Por Frederico Santana Rick

Em 1997, lutadores e lutadoras dos movimentos populares e militantes comprometidos com um Projeto Popular para o Brasil, após intensas marchas do MST, realizaram a Conferência de Itaici. Estavam ali grandes lideranças de todos os estados e segmentos sociais da esquerda brasileira, incluindo diversos partidos, movimentos rurais e urbanos, pastorais e sindicais. A preocupação era uma só: o resgate de valores e práticas militantes rumo à transformação do Brasil, através da construção de um amplo processo de participação do povo nos destinos da nação. Isso exigia retomada do trabalho de base, da formação política e das lutas de massa.

Da Conferência de Itaici nasce a convicção da necessidade de se construir um grande mutirão, uma Consulta Popular. Desde o início, a questão colocada não era a simples conquista do Estado através das eleições, mas fundamentalmente a necessidade de permitir que o povo brasileiro tomasse seu destino em suas mãos. Construir com o povo as bases de um projeto de nação. Para isso afirmamos que necessitávamos de “refundar a esquerda”, pois só assim “refundaríamos o Brasil”. O caminho hegemônico, que vinha sendo trilhado, e que tinha como bússola exclusivamente a busca de mais espaço na institucionalidade, através da eleição de vereadores, prefeitos, governadores, senadores e enfim, do presidente, pouco a pouco deixou claro o preço que exigia. A esquerda aumentou sua participação em governos, mas a que preço? Perdemos a referência militante na luta de classes e o horizonte estratégico.

O resgate de valores e práticas militantes - lutadores e lutadoras do povo que trazem consigo a mística, a entrega, a ousadia, a dedicação, o estudo e a disciplina para construir outra sociedade – passou de necessário para urgente, urgentíssimo, ao longo dos anos 2000, principalmente após os dois mandatos do presidente Lula. Nesse processo, um conjunto cada vez maior de lutadores foi percebendo essa necessidade. A fragmentação que existia antes do surgimento do PT, e que de certa maneira se manteve representada através das suas muitas tendências internas, e ainda, do PC do B e PCB, dentre outros, veio à tona ao longo da década. Essa divisão de projetos e propostas rumo à construção do Brasil do povo brasileiro se expressou em candidaturas diferentes em 2006, e irá novamente se expressar assim em 2010.

Existe base social popular, lutadores e lutadoras do povo, e mesmo militantes, junto as candidaturas identificadas com a esquerda que se apresentarão para escolha do povo brasileiro em outubro desse ano. Lutadores e lutadoras que aprenderam lutando contra a escravidão, contra a ditadura Vargas e a dos militares/civis de 64, durante a Guerra Fria, contra as ditaduras na América Latina, mas também com as experiências de governos populares e movimentos revolucionários, daqui e de outros continentes. Aprenderam com a atuação do império dos Estados Unidos ao longo do século. Atuação hoje tão visível quanto sempre, haja visto militarização da ajuda humanitária no Haiti, o golpe de Honduras, as bases militares na Colômbia, seu governo a serviço dos EUA, e o golpe de 2002 na Venezuela. E de outro lado, nesse momento temos oportunidade ímpar de aprender com os governos latinos- americanos, que colocam em curso um projeto de integração latino-americana baseado na solidariedade entre os povos, a ALBA (Aliança Bolivariana para as Américas). Lutadores que aprenderam com a Teologia da Libertação e a prática militante que valoriza a mística, a espiritualidade e a afetividade.

Para os lutadores e lutadoras brasileiras é fundamental aprender com a experiência do governo brasileiro, que deveria ser dos trabalhadores e trabalhadoras mas não o é. Prefere ser da conciliação, e com isso conforma toda uma militância nessa prática. Prefere ser do Mercosul, e exercer um papel subimperialista na América Latina abrindo caminho para a ganância das multinacionais. Prefere conciliar a ter a coragem que Celso Furtado pediu em janeiro de 2003 na primeira página do primeiro número do jornal Brasil de Fato. Prefere assistência à emancipação.

A esquerda militante, antes de colocar seu sectarismo e vanguardismo em ação, terá que compreender que os demais lutadores e lutadoras do povo, que estão atuando sob o propósito da social democracia (se tanto!), estão tendo oportunidade de se confrontar com tais distinções de projetos. Além, de como já dito, terem tido vários aprendizados. Se é assim, devemos nos perguntar: porque não está fácil Refundar a Esquerda e construir como horizonte a Refundação do Brasil?

Nos parece que mais que ´ver´, é preciso fortalecer a capacidade de ´julgar´ e ´agir´ dos milhares de lutadores e lutadoras do povo. O aprendizado precisa se materializar em nova prática política. Essa prática precisa gerar novos coletivos. Esses coletivos produzirão novos valores e práticas. Esses novos valores e práticas precisam estar conectados com outros coletivos e práticas. Essa força material e espiritual nasce do trabalho de base, do objetivo e clareza da necessidade do Projeto Popular. Aquele trabalho de base de 1997 segue sendo a urgência que temos em 2010.

Esse trabalho de base é para ser feito não só para fora, como fermento na massa, mas também entre nós, lutadores e lutadoras do povo.

O projeto em movimento

Desse trabalho de base nasceu em 1999 a Marcha Popular pelo Brasil, um feito memorável que constituiu um grande exemplo pedagógico. Nasce também a consulta popular na forma de plebiscito, em 2000, sobre as dívidas externa e interna e sobre a base militar que os EUA queriam estalar em Alcântara. Coroando o Grito dos Excluídos e a 3ª Semana Social Brasileira, puxada pelas pastorais sociais e movimentos. Com essa luta conseguimos barrar a base dos EUA no nosso território. Vitória nossa. Em 2002 realizamos outro plebiscito, dessa vez para barrar a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas). Vale lembrar que o neoliberalismo, as mídias, o próprio presidente e mesmo parte da oposição davam como certas sua implementação, estavam dispostos a negociar apenas os termos nos quais a ALCA seria implantada. Nós barramos o pacote tal como veio, não só no Brasil, mas no continente.

Em 2005 a confluência das forças do Projeto Popular avança organizativamente na construção da organização Assembléia Popular – Mutirão por um novo Brasil, realizando encontro nacional com 8.000 pessoas. Conseguimos também encantoar a Vale do Rio Doce e sua chacina ao meio ambiente e aos trabalhadores com o terceiro plebiscito popular que realizamos em 2007. A empresa, após mudar de nome, segue sendo foco da pressão social.

É preciso que o povo brasileiro construa seu projeto experimentando-o, tentando construí-lo. Ao fazer isso, coloca em movimento suas idéias, anseios e demandas. Seu Projeto, seu aprendizado, se tornará vivência. Será identidade. A solidariedade e capacidade de se indignar são molas propulsoras desse aprendizado. Os lutadores e lutadoras do povo que forem se despertando para a militância em comunhão com a libertação do povo brasileiro, se confrontarão com as velhas práticas (paternalismo, caudilhismo, currais eleitorais, assistencialismo, busca de construir a imobilidade via o tutelamento e o “deixa que eu faço”, “deixa que o vereador aqui do bairro consegue” (ou “o deputado da nossa categoria”). Esse aprendizado é rico.

Mas também a luta que se trava pelo Projeto Popular pelos que estão embrenhados na disputa institucional precisam avançar em seus aprendizados. Há duas formas de fazer com que isso ocorra. Podemos buscar inserir os militantes que já estão atuando nesse segmento dentro da construção dessa nova estratégia. E outra iniciativa, é atuar com coerência na institucionalidade, deslocando quadros políticos que atuem como exemplo pedagógico.

Não nos iludamos. Não há trabalho de base por osmose. Não há permanência da coerência e do respeito ao projeto coletivo maior, fora desse coletivo e dessa centralidade. É preciso organizar os militantes estejam eles atuando em que espaço for. É na célula partidária (no sentido de tomar partido e assumir para si um compromisso que é com o Projeto - chamem esse projeto de Reino de Deus ou de socialismo, traduzido na sua estratégia e na sua tática), que se forma o novo homem e a nova mulher.

Arregacemos as mangas. 2010 não é só eleição, mas também luta

Em setembro de 2010 teremos mais um plebiscito popular. Esse, como os demais, toca em um ponto fundamental se queremos refundar o Brasil em novas bases: o limite da propriedade da terra e a reforma agrária. Motivo do acirramento da disputa entre o projeto das elites e o popular ao longo dos séculos na história brasileira, igualmente vivo e significativo nos dias de hoje. Em 2010 teremos também uma marcha das mulheres, de 08 a 18 de março, entre Campinas e São Paulo. Será ainda o ano da II Assembléia Popular Nacional, de 25 a 28 de maio.

Como vemos, elevar nosso próprio nível de consciência, através da formação, nossa capacidade de trabalho de base, e de lutas que garantam conquistas para o povo (hoje somos 14 milhões de brasileiros que passam fome, milhares de sem teto, sem terra, sem universidade, sem trabalho, mulheres mercadoria, crianças que não deveriam ser “de rua”), é nossa tarefa para 2010 e até que nós tenhamos o nosso destino em nossas mãos. Até que um verdadeiro Projeto Popular se realize, e seja o motor, prática e identidade dessa nação.

*Cientista social e militante da Consulta Popular e da Assembléia Popular.